Escudos humanos

Num intervalo de comentar
a guerra – Bassorá, não esperes
piedade – lembrou-se de lhe perguntar
por Ulisses; se não recordava,
dos tempos de escola, nomes
e episódios cantados na Ulisseia.

«Dá-me outras palavras», pediu
quem o escutava, «não conheço
Portugal de Norte a Sul».
Pois não; nascera em Moçambique
há cinquenta anos e confundia
a guerra de Tróia com a vaga
aparição de golfinhos em Setúbal.
Mas tinha visto Uma Ulisseia
no Espaço. Seria isso?

Dois homens, numa taberna,
enquanto chovia. O terceiro
era eu: aquele que escreve
e não escreve este poema. Entretanto,
Ulisses veio comprar tabaco,
cerveja e pão. Os longos cabelos,
caindo sobre um blusão negro,
as botas cardadas desafiando a chuva.

Não será por acaso que estamos
na rua Cesário Verde, número trinta
(desculpe, senhor Costa, esta publicidade toda).
A noite e o ódio vêm de novo abençoar
o inferno desigual de todos,
a apagada e vil cerveja que nos junta.

Penélope bem pode esperar.
Esse dano colateral
a que chamamos angústia
serve de montada às Bolsas do Ocidente,
no estertor da última cruzada.

«Até amanhã». Nada podemos fazer.
Oferecemo-nos como escudo
ao peso inútil de mais um dia.
A guerra já está ganha,
a morte é garantida e um poema,
infelizmente, não é uma arma química.

A Flor dos Terramotos (Averno 010)